Tuesday, April 18, 2006

O ANIVERSÁRIO DA TECEDORA DE SONHOS SOMBRIOS

Por Rita Maria Felix da Silva
Uma lua dupla e rubra se aninhava no céu, entre nuvens cor de chumbo eventos de eras primordiais. Deuses sombrios comentavam em seus domínios e seres famintos por sangue e vida, trocavam perguntas entre si:
— O que houve? — indagou um deles.
— Não soubeste? — retrucou outro
— É a Tecedora de Sonhos Sombrios e Contos Vorazes... Que os mortais chamam de Giulia... Uma nova conjunção astral se adianta no infinito celeste, com dedos e desejos carmins prenunciando uma nova era...
— Do que falas? - questionou um terceiro.
— Não ouviste a nova que agora preenche as conversas dos deuses da inspiração e da escrita? — comentou uma dama de modos aristocráticos e escarlates, que se saciava na jugular e no sangue de um príncipe ingênuo e morto. — É a Tecedora de Sonhos Sombrios... Hoje ela completa mais um ano de seu primeiro milênio.
— Comemoremos, então! Mas de que modo? — pronunciou-se um ancião vampiro, que se escondia entre uma sombra e outra.
— Com música que toque o espírito como fogo abraçando o ouro — ordenou uma vampira de elevada beleza e requinte divinos que surgiu do nada, em companhia de um silencioso e temeroso mortal, como se estivesse destinada a governar a todos de sua espécie — E ergamos uma taça do mais rubro e agradável dos vinhos — disse ela e todos obedeceram e se fez grande celebração e grande júbilo por todos os nove mundos e mais além.
FIM
Dedicado a Giulia Moon.

UMA CASA

Por: Rita Maria Felix da Silva
(Dedicado a Márcio Domenes)
Era a Casa, como sempre fora, com seus distintos, inúmeros e monstruosos habitantes, num deserto rochoso, sob um céu de eterno cinza em que crepitavam relâmpagos.
Certa vez, Yuri, o vampiro, voltou perturbado do porão (onde se alojara o Cientista Louco). Encontrou Emílio, o lobisomem, na sala de jantar.
— Fui visitar o Barão Von Troft.
— Cuidado para não ficar louco também. O que foi que ele disse?
— Já pensou sobre o que é esta casa e o que realmente somos? O Barão me disse que não é uma casa de verdade, mas sim a mente de um escritor humano e que somos apenas personagens imaginários e recorrentes desse escritor. Emílio afastou-se furioso com aquela sandice.
FIM

EXCETO UM BEIJO

Por: Rita Maria Felix da Silva
(Dedicado a Marcelo Amado - "O Guardião do Estronho")
Arthur não acreditava que poderia existir, em algum lugar, uma vida que fosse perfeita, mas gostava da sua. Costumava dizer que era bom estar vivo.
Mas não naquele janeiro. Para ele era como se algo estivesse errado com o mundo, enquanto os problemas em seu casamento surgiram de forma inexplicável e as coisas no trabalho haviam deteriorado de "boas, amigáveis e promissoras" para algo certamente pior. E, a despeito de seus esforços para que tudo voltasse a ser como sempre fora, parecia que o destino (ou fosse lá o que fosse) havia se desgostado dele de algum modo irreversível.
Por isso, ele começou a beber e uma noite entrou num daqueles "singlesbar". A idéia lhe seria absurda algum tempo antes - afinal tinha Júlia, e, embora não soubesse escrever poesias e sempre se sentisse bobo e infantil quando tentava bancar o romântico - tinha certeza de que a amava. Porém, enquanto a tristeza nublava-lhe o coração (e oálcool se encarregava de fazer algo mais drástico com seu fígado), sentiu que procurar uma outra companhia feminina não seria de todomal. Então, foi até ao banheiro e deixou que a aliança de casamento e a consciência afundassem juntas na privada.
Voltou ao balcão e continuou a beber, dizendo para si mesmo que logo uma multidão de mulheres apareceria para disputá-lo. Os minutos, porém, foram se juntando naquela noite e logo se transformaram em uma hora e depois duas, apenas para provar que ele estava enganado. Em algum momento, uma partícula que restara de sua dignidade aconselhou-oa ir embora daquele lugar - e, ironicamente, toda esta história tomaria um curso bem diferente se Arthur tivesse escutado essa simples advertência - todavia, por qualquer motivo que sua mente não seinteressou em deduzir, ele ficou.
Foi quando ela apareceu ao lado dele. "Apareceu" talvez seja o melhor termo, porque quando ele olhou para sua direita, a mulher estava lá, como se sempre estivesse ali. E como era bonita - embora, por algum motivo que escapava aquele homem, ela não deveria ser - e Arthur se percebeu deslumbrado e hesitou e gaguejou e lamentou porque não era do tipo que soubesse galantear.
Todavia, isso não seria necessário, pois tudo aconteceu rápido demais.
Se um dia lhe houvesse sido dada a oportunidade de explicar as horas que passou com ela, Arthur não conseguiria dizer como chegou aquele outro lugar, uma casa em alguma praia, cujo nome ele jamais ouvira antes. E eles fizeram amor. Essa era a palavra, porque nunca havia sido assim tão bom com Júlia. Na verdade, nunca nada em sua vida fora melhor do que estar na cama com aquela mulher.
Quando eles pararam - e o dia já havia chegado - assim o fizeram porque Arthur arfava de esgotamento.
— Eu nem mesmo sei seu nome. - ele comentou tolamente.
— Amanda. Pode ser Amanda. Há muito tempo eu chamo a mim mesma por esse nome.
Arthur riu, meio que sem jeito.
— É... Isso tudo foi... Sei lá... Divino. Sabe quando aquelas pessoas dizem que nunca souberam o que é estar vivo de verdade até acontecer isso ou aquilo...? Eu me sinto assim... Mas, não leva a mal, você ée squisita... "Chamo a mim mesma". Ninguém fala assim. - disse ele, já começando a se arrepender por talvez tê-la ofendido.
Ela apoiou a cabeça no tórax dele e depois ergueu a face para olhar diretamente nos olhos daquele homem. E riu levemente, de uma maneira mais bela e sedutora do que ele poderia supor existir.
— Eu pareço estranha para você? - Amanda indagou.
— É... - respondeu ele, enquanto alguma parte de sua alma desejou evitar aqueles olhos sensuais, que pareciam poder envolvê-lo e sufocá-lo, apenas para perceber-se abismado contemplando-os - Quer dizer, você é a coisa mais maravilhosa que já vi, mas é... Sei lá...Parece meio doida.
— "Meio doida"? - ela perguntou e gargalhou tão despreocupada e inocentemente quanto uma criança faria.
— Ei, - disse Arthur, culpando a si mesmo quando ela parou de rir de uma forma tão linda apenas para escutá-lo - não fica ofendida, não, mas parece sim. Você é esquisita, muito mesmo. Quer dizer, é linda também. Meu Deus! Eu nunca me senti assim, nem sonhei que pudesse, mas acho que estou apaixonado. Sério! Sei que devo estar a bancando o ridículo para você, mas eu... Eu te amo.
Ela o acariciou. Arthur se questionou que deveria haver algo de errado ali porque tudo estava tão perfeito... Mas ele ignorou isso, porque seu coração assim pediu - enquanto a libido e excitação aumentavam.
— "Ridículo"? - ela respondeu a ele - Não, só um pouco previsível.
— Quer dizer, essas horas com você... Sei lá, você é o que? O paraíso em forma de gente? Com Júlia nunca foi tão bom assim...
— Júlia... ? - ela o interrompeu.
— É, minha mulher. Quer dizer, não quero mais que seja. Agora ela me parece tão certinha, tão sem graça, uma defunta perto de você. Onde é que você estava esse tempo todo que nunca te encontrei? E como é que foi escolher a mim? Naquele bar devia ter... Uma dúzia de caras mais interessantes do que eu. Quer dizer, esse tipo de coisa, não acontece na vida real. E você não é uma prostituta. Sei que não, não pode ser.
Ele observou com atenção o rosto dela, percebendo que não conseguia parar de contemplá-la... E, quando Amanda ria, algo... Inescapável...Que não pertencia a este mundo... Brilhava naquele semblante.
— Seu destino ou minha escolha... Isso importa? - ela o questionou.
— Não, quer dizer... Não. Tudo que importa no mundo é que você está aqui comigo e que eu gostaria de ficar aqui para sempre. Meu Deus!
Nunca fui tão feliz, nunca pensei que pudesse ser. Ei, eu devo estar dizendo besteira. Eu acho que...
Amanda colocou o dedo indicador sobre os lábios de Artur. Ele parou de falar e ela disse:
— Não se censure. As coisas acontecem do modo que planejei e breve você entenderá o quanto ainda vai ser importante para mim.
Aquelas frases o atingiram de um modo que lhe feriu o entendimento.
— Tá vendo? - ele indagou. Vê só como você fala? E o mais estranho é que você não beija. Nunca beija. Já ouvi falar de mulheres assim...
— Você gostaria que eu te beijasse? - ela perguntou, fixando o olhar nele e havia algo de assustador ali que, em outra situação, teria feito Arthur fugir correndo daquele quarto. Mas não naquele dia, não com a possibilidade de nunca mais ver Amanda.
— Sim, sim, é claro que sim! - Ele dizia quase gritando de tão entusiasmado - eu poderia te implorar, eu daria qualquer coisa por isso.
Ela o olhou com tanta satisfação sincera e pura nos olhos que isso tocou o coração dele, fazendo uma lágrima escapar do olho direito deArthur. E havia algo mais no rosto de Amanda - e, se ele tivesse mais
tempo, talvez pudesse ter deduzido que era piedade.
Então, ela o beijou. Volúpia e desejo explodiram dentro dele. Afelicidade fluía por seu corpo em ondas de prazer que se sobrepunham e competiam entre si. Havia calor e poder ali; era orgásmico, profundo e tinha algo de místico, infinito e cósmico e de algum modo; estranha e remotamente familiar, como se um desejo que ele jamais conseguira articular estivesse sendo realizado exatamente naquele momento, como se algo que ele ansiara e pelo qual houvesse esperado por toda a vida finalmente viesse a seu encontro. Suas melhores memórias eram nada, diante daquilo. Seus mais íntimos e acalentados sonhos pareceram-lhe tímidos e desbotados, por isso murcharam timidamente. Sua mente eespírito foram tocados de forma absolutamente irrevogável e ele imaginou que sua respiração cessaria ou que seu coração houvesse decidido parar de bater, pois tudo aquilo era grande demais para ser sentido ou vivido por qualquer ser humano. Mas ele continuava vivo e sua alma implorava que aquele beijo jamais terminasse.
Foi quando, nos mais profundos abismos de sua mente, surgiu uma voz, de todo modo estranha e não-humana, mas que era, ainda assim, Amanda falando, acompanhada por imagens exibidas de forma acelerada, como num filme, porém rápidas, insanas e reais demais.
"Desde um tempo anterior ao que você pode conjecturar, coisas maravilhosas, bizarras e terríveis dormiam o grande sono aqui neste mundo. Porém, meu povo foi despertado quando sua espécie, Arthur, firmou-se sobre dois pés e continuou caminhando e evoluindo até deixar seu lar original na África para desafiar a natureza e o destino e dominar este planeta.
Com a curiosidade e fascinação de alguém que se vê diante do improvável, contemplávamos vocês. Alguns de nós decidiram tornarem-se os deuses e demônios iniciais da humanidade e assim fizeram, forjando as bases para uma infinidade de mitologias, terrores e credos. Como crianças ansiosas para agradarem pais rigorosos, vocês nos temeram, curvaram-se e humilharam-se diante de nosso poder, ansiosos de nos cortejar, quer por cobiça ou medo. Eu e outros de meu povo escolhemos assumir formas próximas à humana. Tomamos o controle das vidas dos seres humanos e nos tornamos seus primeiros governantes, seus reis e rainhas ancestrais e seus heróis míticos.
Porém, o tempo cuidou de esgotar a curiosidade e a maioria de nós se entediou, cansou-se da humanidade e julgou que seria melhor voltar ao grande sono. E assim fizeram.Todavia, uns poucos de minha espécie continuavam fascinados demais pelos humanos e decidiram manter suas formas quase-humanas e permanecer entre o povo da Terra. Fui a primeira a fazer essa escolha.
Contudo, as eras passaram por mim e meu poder definhou. Percebi que se continuasse entre vocês, acabaria por provar o que chamam de morte, esse grande sono do qual não se pode acordar. Mas meu coração quase-humano se recusava a me deixar partir. Então, elaborei um meio de manter minha juventude e vida e adiar, talvez para sempre, a morte, a qual chamei para mim quando me aproximei de vocês.
Ah, Arthur, você vai me ajudar a conseguir isso, como fizeram todos os outros antes de você. Eu o atraí para mim e te concedi mais do que você poderia sonhar. Por uma eternidade, entre sua espécie, aqueles que se nomearam profetas e sacerdotes prometeram o Paraíso, um conceito tão belo, porém etéreo e inalcançável demais. Eu, porém, não fiz promessas. Eu concedi a você esse Paraíso, ainda que por tão pouco tempo, ainda que talvez tenha sido apenas um vislumbre dele. Em troca dessa generosa dádiva, eu tomo de você sua alma, um presente tão pequeno e frágil, porém, o suficiente para garantir minhaso brevivência e manter a morte e a velhice afastadas, pelo menos por mais algum tempo. Se ainda puder escutar, meu querido, quero que saiba que usarei plenamente o que hoje levo de você".
Ela interrompeu o beijo. Levantou-se da cama e ficou de pé olhando para Arthur. Ele começou a se contorcer. De seus olhos, que agora pareciam vazios, escorriam lágrimas, enquanto olhavam para ela. Talvez houvesse amor ou desespero ou dor na face daquele homem, porém isso não mais importava, porque o corpo dele foi, gradativamente, murchando até que apenas um pó escurecido era tudo o que restava dele.
Amanda passou os próximos segundos olhando o monte de poeira sobre acama. Sentia-se revigorada, viva, seu corpo ardia em juventude evitalidade, mas algo machucava seu coração. Ela resistiu aos sentimentos que queimavam e colidiam dentro de si, porque julgava que seria hipócrita ou melodramático ou simplesmente um clichê se ajoelhare chorar diante do que tinha feito. Não. Ela deveria ser forte e havia prometido que não mais choraria por eles, como fez tantas vezes antes...Amanda vestiu-se, fechou a casa e saiu.
Ainda era o começo de uma manhã. O sol vagarosamente havia se erguido, apenas prenunciando calor daquele dia. Ela foi caminhar pela praia, como gostava tanto de fazer. Deixou que os pensamentos ficassem livres, tentando relaxar. Logo seus servos viriam para limpar tudo o que havia sobrado do homem que acabara de assassinar. Apenas as lembranças dele permaneceriam com ela, uma memória no meio de umainfinidade de recordações - tantos homens que a amaram e foramsacrificados para que Amanda pudesse continuar vivendo... Uma legião de seres moribundos, olhos vazios se desfazendo em... Amor traído...
Olhando para ela por toda a eternidade.
Uma brisa passou por Amanda, acariciando-lhe os cabelos. Algo no coração quase-humano daquela mulher pareceu avisá-la... E ela tocou o rosto, descobrindo uma lágrima escorrendo por ele, e se indagou quantas vezes havia quebrado sua promessa.

GLADIUS

Por: Rita Maria Felix da Silva
Dedicado a Marcelo Milici (Mestre Infernauta).
Nesta época, me chamam de Diomedes. Já usei muitos nomes. Qualquer um que viva demais pode ser dar a esse luxo e espero viver para sempre, afinal foi para isso que paguei uma pequena fortuna em ouro àquele grego albino e esquelético, uns trezentos anos atrás, para que me transformasse em vampiro.
Faz tempo que estou aqui na Arena, uma grande câmara subterrânea na periferia da Metrópole. Lugar bacana. Os humanos nem desconfiam que exista e o sol nunca chega por aqui. A Arena sobrevive promovendo lutas para divertir um público formado por lobisomens, vampiros e outros tipos de seres sobrenaturais. Pelo que eu soube, no passado ainda colocavam humanos para se matarem nos confrontos. A platéia adorava, mas alguns líderes de alcatéia e Lordes Vampíricos - uns sujeitos muito liberais e preocupados para o meu gosto - decidiram encerrar essa prática antes que pudesse chamar a atenção da humanidade.
Tudo bem. Afinal há mais variedade nas lutas hoje em dia. Ontem, por exemplo, tivemos um saci enfrentando um elfo e, na noite anterior, um demônio arrancou a cabeça de um ogro no meio do combate. Grande luta!
O público ficou extasiado.Atualmente, o tipo de luta mais popular é lobisomem contra lobisomem (vampiros podiam ser bem interessantes também, mas os Lordes não permitem. Besteira deles!). E eu acabei virando treinador dessas coisas. Sou muito bom nisso, a platéia adora ver meus lutadores rasgando os adversários e eu ganho muito dinheiro com as apostas.
Mas eu não quero passar a eternidade nesse buraco. Só que vou precisarde muito mais dinheiro para construir o futuro que desejo. Minha esperança é esse garoto que comecei a treinar no último semestre.
Caio. Eu rebatizei de "Gladius", porque soa melhor na Arena. Esse lobisomem tem potencial. Juro que, depois que vi sua primeira luta, nunca vou querer estar no lugar dos adversários desse lupino. Com a reputação do garoto aumentando, mais alguns meses e eu ia levá-lo pro Campeonato Mundial na Europa. Prêmios altos, apostas de fazer medo. O suficiente para me aposentar e tocar a eternidade pra frente. Óbvio que alguma coisa tinha de dar errado.
Primeiro, Caio começou a andar com uns amigos esquisitos. Depois, descobri que eles são do "Quarto Minguante", aquele culto de lobisomens pacifistas. Lobisomens pacifistas? Esse mundo está realmente perdido! Sei lá o que foi, mas "Gladius" ficou bem empolgado com esses malucos. Só me esforçando um bocado - e com uma ajudinha da namorada dele (depois eu falo da moça) - é que tenho conseguido impedi-lo de deixar a Arena, mas ele se sente dividido, indeciso e hesitante. Não tenho vocação para psicólogo de lupino (dizem que tentar entender o cérebro desses bichos faz o nosso virar poeira), mas isso tudo começou a afetar o rendimento do rapaz... Eu converso, recrimino, grito, mas não está adiantando muito. Fico com medo de perder meu melhor lutador e todo o dinheiro que ainda poderia ganhar com ele! Mas não dizem que algo pior sempre pode acontecer? O pior é que pode sim.
Lamartine. Aquele cretino tinha de reaparecer? Ele é vampiro também e treina lobisomens, mas as semelhanças comigo param por aí. Qualquer dia conto como o conheci, aí vai ficar claro porque tenho de resistir à tentação de arrancar as entranhas do desgraçado. Se a família dele não fosse tão importante, eu já tinha isso feito há muito tempo.
Pelo que eu soube, Lamartine estava no Chile e me pergunto por que diabos resolveu voltar e trazendo esse tal de "Bernardo". Era para ser impossível, mas ele treinou esse rapaz-lobisomem melhor do que eu poderia. Vi uma luta do "Garra" - é como o imbecil chama seu lutador.
Aquilo foi irreal. Mesmo antes de se sentir atraído por essa história de "pacifismo", "Gladius" não teria chance. Nem sei se alguém teria.
Para não perder meu ganha-pão, eu estava conseguindo evitar que os dois lutassem. Porém, as alternativas estão acabando. Quinta-feira eles vão lutar. Não dá pra impedir. "Gladius" vai ser feito em pedaços. Bem pequenininhos.
E tem outro ponto que me incomoda nessa história toda, de um jeito que faz meus ossos tremer: "Bernardo" é um daqueles radicais, loucos por uma guerra contra os humanos. Nunca dei muita importância a esses grupos, afinal seria insano desafiar a humanidade. Porém, os lobisomens adoram esse cara, até alcatéias mais racionais escutam o sujeito. Se ninguém fizer nada, logo, logo, ele vai conseguir que os lupinos partam mesmo para um confronto direto contra os humanos. Aí a coisa começa a feder. As regras de aliança vão ser cobradas, os vampiros também entram na luta e outros seres sobrenaturais são arrastados com a gente. Quando toda a matança terminar, sinceramente não sei o que sobra desse planeta.
Agora é segunda-feira. Como estou sem ânimo para sair em caçadas, compro umas bolsas de sangue (tem um duende por aqui, Geórgio, que trafica sangue. Coisa desprezível, mas alguém precisa fazer) e fico bebendo no vestiário, tentando relaxar. Minha cabeça vazia de alternativas. Se eu retirasse Caio da luta, ia perder a moral na Arena, talvez até ser expulso. Enquanto isso, a quinta-feira se aproxima.
Eu termino uma bolsa e abro outra. Quando o líquido chega a minhaboca, traz um gosto inesperado. Cuspo tudo e deixo uma poça vermelhano chão. Minhas estranhas começam a embrulhar. Corro para o banheiro e vomito na pia. Que tipo de porcaria esses humanos andam comendo?
Pode parecer maluquice, mas - enquanto estou lavando a boca - eu tenho uma idéia. Algo diabolicamente simples e que pode funcionar. Isso ou vou precisar mudar de ramo.
Pego um telefone e ligo para Míriam, a namorada de Caio, lobisomem feito ele e é muito gostosa, quer dizer, na forma humana. Vampiros que têm juízo não se envolvem com fêmeas-lobisomens - porque os Lordes têm preconceito e são bem impiedosos nesses casos - mas não dá para olhar para ela sem pensar em pornografia. E o rapaz ama aquela garota.
Sério! Acho que entendo por que. Quando me apresentou a ela, fiquei excitado. Não conseguia pensar em outra coisa. Até que gosto de Caio e não quero mal pro garoto, mas algumas coisas falam mais alto. Eu e Míriam estamos transando às escondidas faz uns quatro meses, torcendo para que ele não descubra.
Conto minha idéia e peço que ela colabore. Míriam fica assustada e se recusa. Eu insisto até que a garota começa a ceder, antes me xinga com palavrões e me chama de "demônio manipulador". Eu rio. "Querida," - explico - "não sou demônio: sou só um vampiro". Ela chora um pouco, meio que de medo, meio porque gosta daquele rapaz e não quer magoá-lo, mas no final concorda. Se há uma coisa que sei fazer nessa vida é convencê-la. Termino a ligação. Vou procurar Geórgio, para esganar aquele idiota por me vender lixo ao invés de sangue. Agora é só esperar a quinta-feira e confiar que Míriam faça a parte dela. E se eu estiver errado? Bem, posso perder minha maior fonte de renda e minha amante de uma só vez... Eu até podia rezar, mas, sabe os deuses não gostam de minha espécie e ia ser muito feio um de nós ser pego rezando.
A terça e quarta passam com uma velocidade que me admira. Tento entrar em contato com Miriam, que parece estar me ignorando. Sem ela não há chance disso funcionar. Também não vi Caio. Imaginei que ele ficaria abalado, só não pensei que ia sumir desse jeito. Aí, vou ficando mais assustado. Será que ele descobriu sobre eu e ela? Não, Miriam não contaria. Ela não é sacana, é só uma tonta. E se tivesse contado, ele já teria me partido em dois.
Chega a hora da luta. O maldito Lamartine está lá, olhando para mim com um riso safado no canto dos lábios e exibindo seu lutador para aplatéia. Nas arquibancadas, o público enlouquece enquanto aplaude o"Garra". A popularidade dele aumenta a cada momento... Nenhum sinal de"Gladius". O juiz vem reclamar pelo atraso. Eu imploro por uma tolerância de só mais dez minutos. Ele concorda, me alertando que esse combate pode terminar em "vitória por desistência". Não! A vergonhaseria grande demais! O rosto de Lamartine se enche de desprezo e arrogância. Ele está certo de que já me venceu.
Ao final de sete exatos minutos, "Gladius" entra na Arena, em forma humana, com roupas normais, como se não tivesse vindo para luta nenhuma. Ele está diferente. Há algo de terrível no rosto do rapaz, um ódio capaz de me assustar.
— Caio, você...
— Cale a boca. Não estou com paciência, Diomedes - ele me interrompe e naquela voz tem alguma selvageria, de um tipo que nunca vi, e depois aponta para o "Garra" - Tá vendo aquele ali? Não sai vivo daqui essa noite.
Decido que é mais prudente não insistir. Sento no meu lugar de treinador. Lamartine vai para o dele. Nunca vi Caio desse jeito. Penso em ligar para Miriam, porém fico com medo de descobrir que ele já tenha detonado com ela. Eu sou um babaca por inventar um plano maluco desses e agora meu futuro depende de um lobisomem babaca, enlouquecido e com o coração partido.
"Gladius" e "Garra", ambos ainda não transformados, se aproximam. O Juiz, um vampiro chamado Saulo, começa a explicar as regras, quando Caio grunhe "Sem Regras!" e muda para a forma lupina numa velocidade que nunca pensei que fosse possível. Em três segundos, ele está no meio da arena transformado em um lobo humanóide com pêlo escuro e dois metros de altura. Em quatro segundos, ele dá um soco com o punho direito em Saulo, que é atirado a dez metros de distância (os Lordes não vão gostar disso), arranca e joga fora os trapos que restaram desuas roupas e ruge para "Garra", como se ordenasse que o adversáriotambém mudasse de forma. Pela primeira vez, vejo medo em "Bernardo".Ele obedece, se tornando um monstro ainda maior que Caio, porém, de pêlo acinzentado. A luta começa.
Fico olhando assombrado (enquanto Lamartine se desespera). É a carnificina mais violenta e rápida que já vi. Durante esses dias eu pensei que meu plano poderia não funcionar, afinal "Garra" é um lutador melhor, mais bem treinado, mais forte e selvagem. Tudo podia ser só uma idéia maluca. Não tinha nenhuma garantia de dar certo. O danado é que deu. Depois de alguns instantes de urros, gritos de dor, dentes, sangue torrencial e mutilações, apenas "Gladius" resta de pé.
Ele está muito ferido, coberto de sangue, mas não mutilado. Quanto ao "Garra", todos os pedaços que sobraram dele estão espalhados pelo chão da Arena. A platéia fica muda por um momento - até mesmo essa laia de sádicos sanguinários foi surpreendida por tudo isso -, para depois explodir em gritos e aplausos.
No meio daquela barulheira, o juiz fica gritando nos meus ouvidos (reclamando do soco que levou e ameaçando que vai se queixar à Ligados Lutadores, aos Líderes de Alcatéia e aos Lordes). Eu ignoro.
Prefiro aproveitar esse instante de triunfo. Do chão, pego a cabeça de"Garra" e entrego a Lamartine, que ainda estava sentado, com cara de bobo, duvidando do que aconteceu. Ele olha assombrado para aquela coisa morta e ensangüentada em suas mãos.— Uma lembrancinha pra você. - eu digo e rio, depois me afasto, enquanto intimamente prometo a mim mesmo que Lamartine vai ter um final parecido.
Me aproximo de Caio. Sinceramente, não sei o que dizer. Ele olha para mim e reverte a forma humana. Me assusto e me preocupo com o rapaz.
— Caio, não! Volte à forma de lobisomem! Seus ferimentos ainda não fecharam...A regeneração dos lobisomens é tão boa quanto a nossa. Transformado, Caio iria sarar logo. Na forma humana, ele não tem chance. Então, entendo. Ele precisava falar.
Eu grito pros seguranças (trolls de coração bem ruim, liderados por um doido chamado Ivak) que contenham a multidão exaltada antes que chegue até Caio.
— Diomedes... - ele fala de um jeito que dá pena -, esse cara, Bernardo... Você não sabe o que ele fez... Ele e Míriam... Não!
Ele cobre o rosto com as mãos e começa a chorar. Juro que não costumo ver lobisomem chorando. Ele me conta que a namorada confessou que estava traindo-o com "Bernardo", que isso o enlouqueceu, que desejou rasgá-la até que ficasse irreconhecível, mas não teve coragem. Porém, Bernardo ele não deixaria escapar...Tento consolar o rapaz. É. Também não sabia que eu tinha coração mole.
Deve ser a idade fazendo seus estragos. Quando ele começa a cair, eu o seguro pelo ombro e tento convencê-lo a se transformar novamente.
Felizmente, ele obedece. De volta a forma de lobo humanóide, seus ferimentos passam a fechar.
Os trolls começam a perder o controle da multidão. Caio olha para o público, uma turba ansiosa para chegar ao campeão que derrotou o "Garra". Ele está alterado. Se tentarem tocá-lo, vai haver outra carnificina aqui. Por cautela, começo a me afastar para um lugar seguro.
Porém, Caio ergue a cabeça e grita para o teto o urro mais bestial eterrível que já escutei. Todos na arena param e ficam em silêncio. Em seguida, olha ao redor, com mais ódio e dor naquela face animalesca do que sei explicar. O público e os seguranças se afastam sem precisar que ninguém peça nada, abrindo caminho para aquele lobisomem, que sai correndo desesperado pelos corredores. Claro que ninguém ali era louco o bastante para tentar impedi-lo.
Sem um astro para abraçarem, o público fica comemorando assim mesmo.
Olho para Lamartine, que continua na cadeira de treinador, segurando acabeça e completamente desolado. Essa visão me anima a alma e vou recolher o dinheiro que ganhei apostando em Caio.
Espero passar algumas horas. Lá fora o sol nasce e depois vai ficando alto no céu. Nenhuma má notícia chega. Ligo de volta para Míriam, torcendo que nada de ruim tenha realmente acontecido.
Ela me diz que tudo está bem agora, que Caio veio ontem à noite, ainda na forma lupina. Míriam pensou que ele iria fazê-la em pedaços, ao invés disso o rapaz reverteu à forma humana, chorou e abraçou-a. Ele disse que a amava, que a perdoava, que os dois deviam esquecer o que aconteceu. Ela também disse que o amava, que estava arrependida, que nunca mais iria traí-lo. Eles transaram até de manhã. Ele ainda está dormindo ao lado dela agora e tudo está bem. Claro que a coisa toda foi meio clichê e bem brega, mas, o que importa? Aconteceu do jeito que eu planejei! Pergunto se Caio vai para o culto "pacifista" no sábado e a moça confirma que sim, mas explica que ele vai se despedir da Igreja. Vermelho de alegria eu pergunto por que. "Caio disse que essa vingança o desonrou diante da congregação" - responde ela - "e que agora vai afundar o resto da vida nas lutas da Arena, porque é uma alma perdida mesmo." Eu sorrio e prometo a ela que chego logo depois que o garoto sair. Vai ser uma noite e tanto, afinal estou com saudade dela e temos muito atraso para recuperar. Me despeço e desligo o telefone.
Sento e fico calado, pensando. Às vezes eu me surpreendo comigo mesmo!
Não vou perder meu melhor lutador, nem a amante; humilhei o Lamartinee, ainda por cima, livrei o mundo de uma guerra apocalíptica.
Na segunda-feira, lá no banheiro, eu tive uma idéia. Para que Caio pudesse derrotar o "Garra", eu precisava de um milagre... Ou, pelo menos, de algo que pudesse estimulá-lo. Inventei essa história de que Míriam estava traindo "Gladius" com "Bernardo" - o que é uma mentira das mais cabeludas, afinal, ela só o trai comigo mesmo. Convencer Míriam não foi difícil e eu sabia que o rapaz iria ficar tão transtornado que não perceberia qualquer furo em minha pequena trama.
A dúvida era se meu caso com a namorada dele não iria aparecer no meio dessa história ou se ele não iria matá-la enlouquecido pela supostatraição. Bem, eu tinha de arriscar. Mas tudo deu certo! Tudo mesmo!
Esse lance de Caio deixar a Igreja é um dividendo extra. Mas quem está reclamando? As apostas sobre ele vão aumentar muito depois desta vitória e eu já posso começar a aprontar as malas para o Campeonato na Europa. Muito dinheiro, muito dinheiro mesmo vai rolar naquelas lutas e vou levar um dos favoritos ao título mundial.
Pego umas bolsas de sangue e fico bebendo, dessa vez para comemorar (ah, arranjei outro fornecedor. Tive que fazer isso depois que Geórgio sumiu...).
Sabe aqueles momentos em que tudo está funcionando a seu favor?
Aqueles instantes abençoados em que tudo parece realmente perfeito, em que a vida (ou semi-vida, como chamam alguns) de um vampiro é a melhor coisa do mundo?
Esse é um momento daqueles. A vitória tem um gosto melhor do que sangue. Eu levanto o braço direito e dou um grito de triunfo. Nunca tive muito jeito pra filósofo e podem me chamar de imaturo quem quiser, mas eu adoro finais felizes, especialmente quando o final écomigo.
FIM

LORDE DRI

Por: Rita Maria Felix da Silva
"(...) Ele havia escolhido um nome humano, como convinha à situação, mas ainda chamava a si mesmo de Lorde Dri, na verdade um título, que o conectava a uma linhagem de milênios.
Há um século, fora um vampiro de elevada estirpe, cujos inúmeros feitos tornaram-no orgulho de seu povo. Embora amasse a espécie a qual pertencia, o destino o fez encontrar uma humana a quem ele entregou seu coração imortal. Todavia, sua felicidade foi breve, como compete aos vampiros, pois os ardis dos inimigos logo vieram para tomar a vida daquela a quem Lorde Dri tanto amou. Mesmo assim, ele já havia seafeiçoado por demais aos humanos.
Lorde Dri sabia que, em épocas primervas, vampiros e humanos compartilharam uma origem comum e conviviam em paz, quando o sangue das feras ainda era o suficiente e os homens e mulheres desse mundo eram mais do que caça e alimento. Cem anos atrás, ele preocupou-se ao antevir a crescente intenção belicista de algumas facções vampíricas, o que iria levar a uma guerra direta contra a humanidade, um conflito ao qual nenhum dos lados sobreviveria. Tentando evitar a extinção fezo, que sempre se julgara impossível tornou-se humano; para mediar a relação entre as duas espécies.
Desde então, estudou magia, para adquirir os meios de prolongar sua vida — e assim prosseguir em sua tarefa, até o dia abençoado em que não fosse mais necessário — e também para defender-se da multidão de adversários que ansiava pela ruína dos povos humano e vampírico.
Sabe-se que a nova vida de Lorde Dri não foi tranqüila, como cabia a alguém de sua condição. Conta-se que ele viveu inúmeras histórias tempestuosas. Como a que conto a seguir...
"(Trecho extraído de "As Crônicas de Marind")
O prédio era antigo e situava-se num ponto afastado do centro de São Paulo. A arquitetura pareceria gótica, com linhas que se esticavam desejosas de tocar os céus. Estátuas de gárgulas e anjos adornavam as escurecidas paredes externas. Todos os andares estavam vazios, excetoa cobertura, onde se podia encontrar o único habitante do edifício: Lorde Dri. Solidão e isolamento, diriam alguns, ele chamava apenas deprivacidade.
O apartamento era espaçoso. Estantes cheias de livros antigos num dos cantos. Decoração com móveis de antiquário. Relíquias preciosas e incomuns aqui e ali. Um gato de pêlo acinzentado descansando indolentemente debaixo de uma poltrona. Um computador na escrivaninha.
Ao lado, uma xícara de café. Na tela as primeiras linhas de um novo conto. Sobre o mousepad, anotações num bloco de papel, a respeito de mudanças no site.
Em outro cômodo, um grande e antigo relógio acabara de soar sete horas. Lorde Dri havia aberto as portas de vidro que davam para avaranda. Ficou lá fora, sob a luz de uma lua suave e minguante,meditando sobre a profundidade da noite, absorvendo suas fragrâncias e, com uma mente aguda, escutando as tentações e possibilidades da escuridão. Por um momento, lembrou do que era a data de hoje, sorriu levemente, mas logo preferiu ignorar essa informação, afinal, para uma criatura como ele, algo assim não deveria importar.
Ainda estava divagando, quando sentiu uma leve perturbação na delicada teia de magia que sustenta a realidade. O gato cinzento miou melancolicamente e fugiu apressado. O mago virou-se. Rapidamente, murmurou dois encantos formados por monossílabos de um dialeto lemuriano. Um invisível círculo místico de proteção formou-se ao redor dele. O feiticeiro estirou o braço direito e de sua mão partiu uma esfera de energia azulada que derrubou uma forma estranha no canto dasala.
Ainda com o círculo de proteção ativado, aproximou-se do ser humanóide— pele avermelhada; sem cabelos ou pêlos; olhos amarelos, oblíquos e desprovidos de pupila; vestido em trapos feito de coro grosseiro —caído sobre um tapete árabe do século X, enquanto a energia azulada crepitava em torno daquele corpo.
— Paz e piedade, grandioso Lorde Dri! — implorou a criatura — Oh, remova o feitiço, remova!
— Slifgor, — reconheceu ele e olhou com desprezo e irritação para acriatura, um demônio menor, porém insistente, que teimava em desafiá-lo — você invadiu minha casa certamente com intenções hostis.
Eu estaria em meu direito se o destruí-se.
— Não, milorde! Vim avisá-lo como um amigo.
— Você nem sabe o que essa palavra significa — riu Dri.
— Grandes mudanças no Plano Inferior, senhor. — grunhiu o demônio —Todo um novo Status Quo e a situação ficou perigosa para criaturas como eu. Preciso de aliados no mundo mortal. Trouxe informações valiosas, em troca de uma aliança.
Se as atitudes de Slifgor não fossem também risíveis, Lorde Dri não teria paciência com ele durante todos esses anos, por isso permitiu que continuasse.
— Muito bem, diga o que quer, mas saiba que não tenho interesse em me aliar com alguém incapaz de dizer uma única verdade.
— Mestre Dri! — grunhiu a criatura — a verdade arde, é veneno que dóie queima, mas posso ser sincero quando isso me é útil. Há uma conspiração contra você.
— E em que época não houve? — ironizou.
— Não, dessa vez diferente! — disse o demônio — Seus mais queridos amigos.... São eles que agora tramam sua queda.
— Imbecil mentiroso! – irou-se o mago – Agradeça por que vou apenas enviá-lo de volta para casa, ao invés de fragmentar seu espírito. Como eu deveria fazer....
Em seguida, ergueu a mão esquerda para gesticular, porém, Slifgor emitiu um grito tão desesperado que o fez paralisar de espanto.
— Não, Senhor Dri, orgulho da espécie humana e vampírica! Escute antes que seja tarde! Escute com seu espírito!
— Não, Nem mesmo em uma eternidade meus amigos tramariam contra mim.
— Há! — zombou o demônio — pois a eternidade chegou! Reconheça que eles, que sempre foram aliados de grande valor, poderiam ser muito perigosos se assim o desejassem.
— E por que fariam isso? — questionou Lorde Dri.
— Você é uma criatura incomum e seu potencial incomoda a mais seres do que imagina. Durante anos, aqueles a quem chama de amigos temeram e hesitaram agir contra seu destino, mas é tempo de grandes mudanças por toda a parte e a relutância terminou. Convidaram-no para uma reunião inexplicável ainda esta noite, não foi? A conspiração age hoje e Lorde Dri não sobreviverá a ela. Escute minhas palavras e pergunte a seu coração.
A acusação encheu de ira o mago, todavia, por algum motivo que ele não saberia explicar, uma parte de seu coração escutou as palavras de Slifgor.
— Muito bem, demônio, — disse Lorde Dri por fim, enquanto dissipava o encantamento que continha aquela criatura — parta daqui e mantenha-se afastado até que o convide a voltar... Eu ponderarei sobre o que me disse.
— Minha espera será breve, poderoso senhor! – disse Slifgor e explodiu em gargalhadas para depois desaparecer.
Lorde Dri foi até um armário e de lá trouxe um pequeno baú, onde havia, entre outras coisas, uma esfera de prata, perfeitamente uniforme, soberbamente elaborada por mãos que jamais foram humanas.
Sentou-se numa poltrona da sala e ficou contemplando aquele objeto,que lhe fora dado como agradecimento três décadas atrás, durante uma de suas estranhas aventuras. Ele gostava de segurar a esfera entre asmãos, admirar sua forma perfeita. Era um modo de lidar com a tensão, de tentar relaxar em instantes de tormenta.
Os próximos dez minutos foram gastos enquanto ele ponderava sobre o assunto e amaldiçoava a si mesmo, pois, embora houvesse divergência entre as partes de seu coração e espírito, aquelas que acreditaram nas palavras do demônio começavam a sobrepujar as outras.
Logo, guardou de volta a esfera. A reunião misteriosa seria às oito e meia. Aprontou-se como pôde, muniu-se de todos os encantos que sua prudência e o tempo escasso permitiram-lhe reunir. Trocou de roupa e ao sair prometeu a si mesmo que — o que quer que acontecesse — não seria pego desprevenido.
Por cautela, chegou ao local um pouco antes da hora marcada. Parecia um depósito velho e abandonado, talvez um teatro falido ou algo assim.
Subiu uma escada até o primeiro andar e chegou a um grande cômodo.
Tudo estava escuro. Procurou e não pôde encontrar um interruptor.
Antes que invocasse um encantamento luminoso, seu coração gelou. Lorde Dri percebeu uma pequena anomalia nas fronteiras de sua percepção —habilmente escondida — liberando estática mística com a clara intenção de confundir seus sentidos mágicos, permitindo que um inimigo se aproximasse sem preocupação. As palavras de Slifgor começaram acastigar sua memória.
Ele lutou para superar a estática e logo começou a distinguir algo daquela escuridão. Havia muitas pessoas ali, — dez, talvez vinte — em absoluto silêncio, todas utilizando variações de encantamentos de ocultação. O mago entendeu que estava cercado, em posição desvantajosa e prestes a ser atacado.
Porém, mais do que a ameaça em si, o que o incomodou foi o que seu coração começou a lhe mostrar. Ele tentou olhar para dentro da escuridão e disse:
— Giulia... Você está aí? — e, na escuridão, ele pôde sentir um sorriso não de lábios, mas que provinha da poderosa mente da vampira aquem chamam de Tecedora de Contos Sombrios e Histórias Vorazes, Mestra de mistérios e profunda magia, que antes fora uma querida amiga
— E você, Martha? Está aqui também, não é? — e, nas trevas, o espírito da feiticeira humana que, em outros círculos, ganhou o direito de usar o título de Senhora das Artes Escritas e Mágicas, aquela que sempre fora sua confidente, não pôde esconder-se dele.
— Camila, também veio? — e, no escuro, a presença da Fada das Letras e Poesia, criadora de canções de singelo e impressionante poder, a quem ele elogiara neste reino e em tantos outros, revelou-se para ele.
E, na escuridão, uma delas se virou para uma outra e disse:
— Esse cara é incrível, não é? Talvez no mundo todo só dois outros magos, além dele, conseguiriam detectar aquela anomalia que você colocou no campo místico desta sala.
E, no escuro, outra voz se ergueu:
— Vamos logo, meninas e rapazes, não nos preparamos tanto para isso àtoa, não é?
E, nas trevas, alguém mais se pronunciou:
— Dri, você vai adorar! Há anos que queremos fazer isso.
A traição daqueles a quem tanto prezou machucava o espírito de Lorde Dri e, por isso, uma lágrima deslizou por sua face. No escuro, a Tecedora, a Senhora e a Fada se moveram em direção a ele e uma multidão – composta por vampiros, lobisomens, feiticeiros e feiticeiras (humanos ou não) e outros seres sobrenaturais — as acompanhavam. Lorde Dri preparou-se. Apesar de seu coração ter acabado de se partir, o momento exigia uma batalha e, se estava escrito que a noite terminaria em carnificina, ele jurou para si mesmo que muitos outros corpos tombariam antes do seu.
O mago já ia acionar seus mais poderosos feitiços, quando veio um som distante e seco, seguido de uma inesperada luminosidade. Por um fragmento de instante, ele pensou que fosse um encantamento luminoso lançado contra seus olhos, todavia uma parte de sua mente avisou que eram apenas lâmpadas que foram acesas após alguém apertar um interruptor.
A cena diante dele lhe pareceu estranha e inesperada demais:
Giulia Moon, Martha Argel, Camila Fernandes e muitos outros amigos seus, abraçavam-no e cantavam "Parabéns pra Você". Na sala, havia mesas com comida e bebida e, por toda a parte, faixas onde podia se ler inscrições como "Feliz Aniversário, Dri!". E, no rosto daquelas pessoas, ele não encontrou qualquer traição, apenas uma alegria, simples, desavisada e sincera.
De repente, Dri sentiu uma nova perturbação na Teia Mística da Realidade, e todos, excerto ele, ficaram estáticos e o próprio tempo parou. Ele não precisou que seus sentidos o alertassem, pois seus sentimentos já haviam feito isso. Ele se desvencilhou de seus amigos evoltou-se. No canto da sala, havia uma jovem. Seus cabelos eram escuros e ondulados como se tivessem sido tecidos a partir da essência da própria noite. A pele era pálida como o luar. Os olhos lembravam atranqüilidade de estrelas distantes no céu noturno e por trás deles podia-se sentir um espírito profundo e antigo, porém cheio de desejo, paixão e intensidade. As feições e as formas pareciam terem sido esculpidas em mármore por algum hábil artista e delas escapava uma beleza que jamais poderia ter sido humana. Suas roupas eram de couro, modernas e pretas e em suas costas podia-se ver as asas que denunciavam sua condição de anjo.
— Marind. — disse Lorde Dri e olhou surpreso para a presença inesperada daquela integrante das Legiões Noturnas.
— É, seu bobo.— respondeu ela — Esperava quem? Zashiel no seu aniversário? Viu só, não havia conspiração nem nada. Era só uma festade aniversário. Uma festa surpresa. Sãos seus amigos, nunca iriam aprontar com você..
O feiticeiro olhou para ela com atenção. Marind o amava, mas do que ele podia julgar possível. Semelhante a Dri, aquele anjo havia se aproximado demais dos humanos e foi assim que o encontrou. Eles fizeram amor, algumas vezes, e estiveram juntos, por um tempo, no entanto a memória da humana Cassiopéia ainda era forte demais no coração de Lorde Dri e, por isso, eles precisaram se afastar.
— Feitiços que mexem com o tempo são bem perigosos — disse ele.
— Sem querer ofender, eu tenho mais experiência que você — respondeu ela.
— Com certeza. Mas, como eu pude acreditar em Slifgor? — questionou Dri e a culpa começava a corroê-lo.
— Aquele é um idiota sortudo. Escavacando, em busca de comida, nas ruínas de Baral-Jadhur, uma antiga fortaleza dos demônios na borda do Inferno (ainda lembro quando destruímos aquele lugar.), ele encontrou um pergaminho com um encantamento perdido. Não tenho permissão para dizer o efeito que aquele feitiço teria sobre alguém de minha espécie, mas Slifgor, por curiosidade, testou num humano e descobriu que servia para convencer que se estava dizendo a verdade. Funcionou até com você. Estou impressionada.
— Eu devia ter resistido. Olhe para meus amigos, tão inocentes, julguei-os mal. A verdadeira traição foi a minha — lamentou Lorde Dri, curvando a cabeça.
— Ei, como você é dramático! Não foi culpa sua. Lembra que estava sobre influência de magia? O pior é que o conheço e sei que vai passara a eternidade se recriminando. Eu vou evitar isso. É seu aniversário e tenho que te dar um presente, não é? Vou apagar e reescrever a última hora e meia que você passou. É só um pequeno intervalo de tempo. Coisa fácil de fazer. Se alguns dos Anciões grunhirem, sem problema. Eu sei lidar com eles. — ela disse e começou a se concentrar e o tempo rugiu e se contorceu sobre si mesmo — Tinha outra coisa que eu queria fazer.
Não, você também não ia lembrar disso. Deixa para depois. —acrescentou Marind.
Lorde Dri estava de pé no meio daquela sala. Uma festa de aniversário surpresa ao seu redor, uma multidão de amigos abraçando-o e cantando.
Tudo parecia bem, mas ele sentia algo errado, como se alguma coisa faltasse. Rememorou tudo o que fizera naquele dia. Lembrou que, no início da noite jantara, depois ficou diante da tela do computador, com uma xícara de café, enquanto começava a redigir um novo conto e anotava mudanças a serem feitas no site. Em seguida, foi à varanda,contemplou a noite por um tempo, depois entrou para se aprontar e vir para cá. Quando chegou foi surpreendido por esta festa. Não, nada faltava, tudo estava bem. Assim, o feiticeiro, ignorou o leve incômodo no fundo de sua mente e o assunto foi esquecido.
Giulia Moon estava abraçando-o quando disse:
— Ah, Dri, há anos que queríamos fazer algo assim. Mas você é tão avesso a comemorações. Até pus uma anomalia na Teia da Realidade, para confundir seus sentidos mágicos e te pegarmos de surpresa mesmo. Você é bom, porém, felizmente, não detectou. Parabéns, meu amigo!
— Obrigado, Tecedora de Histórias! — respondeu ele, se permitindo a sorrir.
— Sempre formal, não é? Relaxa um pouco. É teu aniversário. — comentou ela — para depois acrescentar — Nossa! Você está carregado de feitiços em modo de espera, prontinhos para serem usados. Vai para alguma guerra depois que sair daqui?
— Não, deve ser só por segurança. Acho que estou ficando paranóico.
— Como eu disse, relaxa: é teu aniversário.
— É, relaxa um pouco. — disse uma voz por trás dele.
O feiticeiro soltou Giulia e se virou. Lá estava Marind.
Ela se aproximou dele, puxou-o para si e o beijou. Ao redor, as pessoas, humanas ou não, riram e brincaram com a cena.
Quando o beijo terminou, ambos falaram em voz baixa e ativaram encantamentos para impedir que alguém pudesse escutá-los.
— Não me diz que eu não devia ter feito isso. A lembrança de Cassiopéia pode assombrar você por toda a eternidade, mas acho que um momento como esse não é nenhum pecado.
— Não é não. — disse ele e curvou a cabeça rindo meio para si mesmo.
— Ah e esse foi meu primeiro presente. Tem outro.
Como se houvesse surgido do nada, um pequeno objeto foi entregue por Marind. Lorde Dri segurou-o atenciosamente entre as mãos.
— É mesmo ele? Já não o vejo faz tempo.
— Isso, acho que você não o viu recentemente. — Marind disse enquanto ria para si mesma, de uma forma que Lorde Dri não pôde entender. — Sei que essa coisa vive te incomodando. Arranjei uma pausa na guerra e cuidei para que nunca mais fizesse isso. — como se houvessem combinado, ambos desativaram os feitiços de silêncio. Ela acrescentou, falando em tom normal —Parabéns, Dri, de todos aqueles que te amam.
E todos gritaram parabéns. Lorde Dri agradeceu, colocou o objeto no bolso e foi participar da festa.No interior daquele pequeno cubo — feito de um cristal inexistente no planeta Terra — a forma reduzida, congelada e inerte daquele que um dia fora o demônio Slifgor repousava tranquilamente.
FIM.
Nota: Dedicado a Adriano Siqueira/Lorde Dri, por seu aniversário.
O personagem Lorde Dri foi criado por Adriano Siqueira.

ADAM E SARAH

Por: Rita Maria Felix da Silva
Essa tem sido uma semana difícil. O homem mais interessante que encontrei só conseguia falar de um mistura de futebol e halterofilismo. A conversa não passou de cinco minutos. Para piorar, nenhum contato de meus empregadores. Nada que valha a pena fazer ou dizer. Nenhum motivo para levantar da cama. Ontem, durante uma solitária madrugada de insônia, fiquei trocando de canal pela TV, até ser atropelada por um documentário em que George Bush detonava um discurso apaixonado sobre os EUA terem "o dever sagrado de proteger a humanidade contra as forças do terrorismo apoiadas pelos países do Eixo do Mal". Ele vai acabar afogando o mundo em sangue, isso sim.
É por coisas como essa - para poder agüentar esse mundo cronicamente tedioso - que escolhi as duas profissões certas para mim: por causa de minha mãe, me tornei uma bruxa (e podia ser até melhor do que ela ou, mesmo, vovó, se eu fosse só um pouquinho mais dedicada...Claro, isso se na Magia não houvesse aqueles momentos tão tediosos); para escapar do tédio, comecei a caçar vampiros. Depois encontrei gente maluca o bastante para me pagar por isso. Pra mim tudo bem, até que eu me divirto e há modos muito piores de se ganhar a vida.
Ah, sim, meu nome é Sarah.
Eu estava navegando pela Web (minha caixa de e-mail abarrotada de propaganda e correntes de oração...), quando topei com uma mensagem de meus chefes. Obrigada, Deusa! Uma nova missão, finalmente. Pensei que haviam me esquecido...Ou contratado alguém melhor. Passei algum tempo, pesquisando na Internet e analisando o material que me enviaram -especialmente, os informes recentes de ações vampíricas no Brasil.
Memorizo o nome no e-mail. Meu novo alvo. Adam Whitehill.
Sobrenome famoso. Essa família vive se metendo em encrencas extraordinárias. Apesar disso, garanto que os Whitehill nunca imaginaram terem um parente vampiro.
Adam Whitehill. Charmoso, aquele jeitão inglês que deixa muitas de nós caidinhas, e tem essa beleza vampírica, que é bem hipnótica. Mas depois que se vê um desses monstros em ação, depois que se sobrevive a um confronto com um deles, bem...você pára de achar graça numa criatura dessas, mesmo porque; depois que você se acostuma, a coisa fica bem clichê. Muito teatral e afetada.
Preparei-me para ele e consegui entrar numa festa onde Adam pretendia caçar uma nova presa. Ah, não levei estacas, cruzes, alho, e toda essa tralha. Afinal, sou uma bruxa e não preciso disso.
A festa era num dos bairros mais chiques da região metropolitana, uma ocasião cheia de celebridades, que me olhavam com um quê de desprezo, pois se sentiam atormentadas pela dúvida de como eu poderia ter entrado ali. Devolvi o olhar e pensei num palavrão.
Bebi pouco - no meu ramo, pode ser perigoso se embriagar em serviço. Também evitei as cantadas de dois ou três rapazes já um pouquinho bêbados. Não que fossem desinteressantes, mas eu precisava estar livre se quisesse atrair minha presa.
De repente, tive um... Pressentimento? Intuição? É o tipo de coisa que uma feiticeira sente quando algo está errado... Difícil de explicar sem usar linguagem de bruxa... Também desconfiei de algo alterado no gosto da bebida... Depois disse para mim mesma que estavaficando paranóica... Que minha mente estava tentando me assustar...Besteira, impressão... Afinal, exceto por Adam, não havia nada ali que pudesse ser perigoso...Pelo menos não para mim.
Dei um riso leve e revi na memória o que tinha lido nos arquivos sobre a dona daquela festa. Teresa Velásquez Torrentes. Muito rica, reclusa, solteirona, esquisita. Desde que voltou ao Brasil, tem promovido as festas mais badaladas das colunas sociais, porém, não aparece em nenhuma delas. Praticamente nunca é vista por ninguém.
Dizem que instala câmeras escondidas no salão para ficar só observando as pessoas se divertirem. Uma doida voyeur. Não preciso me preocupar.
Deslizei os olhos pelos cantos da festa, imaginando onde as câmeras poderiam estar, e percebi que meu desconforto era apenas isso: a incômoda sensação de estar sendo vigiada.
Propositadamente, comecei a projetar uma aura de inocência e ingenuidade. O tipo de coisa que iria atrair minha presa. Ele logo veio. Alto, cabelo louro e curto. Rosto de modelo, ainda mais bonito do que nas fotos, e que parecia congelado entre os trinta e quarenta anos. Os músculos...Mesmo debaixo daquelas roupas, dava para perceber que eram bem delineados. Quando começou a se aproximar, não pudedeixar de admirar-me com o porte dele, sua pose, um certo ar denobreza, que atraiu olhares invejosos dos outros homens e os fez se sentirem empalidecidos e superados. Com certeza, outra garota seria tonta e poderia cair na dele.
De fato, uma adolescente, do tipo mais peruazinha que existe, trombou com ele no meio do caminho e ficou jogando charme e uma conversa besta para cima de Adam, com tanta empolgação que imaginei se ela não iria rasgar as roupas ali mesmo e se atirar em cima do vampiro. Ele não parecia muito interessado, mas deve ser o lance dos "bons modos vampíricos". Aquela patricinha estava impedindo que ele chegasse até mim, sua presa inicial, então ela iria ter que servir de refeição no meu lugar.
Reforcei o encantamento que estava usando para atraí-lo e cheguei perto dos dois. Em trinta segundos, ele se esqueceu da garota e ela saiu dali me odiando para sempre. Menina, acho que nunca vai saber, mas salvei tua vida.
Eu o estava enganando perfeitamente e ele pensava que aquele truque de hipnose vampírica estava funcionando comigo... Apesar da situação, a conversa foi maravilhosa. Passeamos por um leque de assuntos tão variados que me empolgou, porque não costumo encontrar um homem de tanta cultura e bom gosto assim. Controlei-me quando percebi que estava começando a deseja-lo. Ah, Adam, se ao menos você não fosse um vampiro...
Em certo momento, ele me sugeriu que deveria haver quartos lá em cima, que já tinha visto outros casais subindo para o primeiro andar daquele casarão. Ele tentou parecer mais sensual do que já era e deu um riso malicioso, esperando que eu entendesse seu desejo. Claro que entendi, mas disse que adoraria conhecer o apartamento dele.
Nós saímos no carro de Adam, um modelo europeu tão moderno que ainda não estava disponível no mercado. No caminho, ele recitou uma poesia erótica para mim. O mesmo texto em italiano, alemão e árabe.
Fingi não entender essas línguas. Ele riu. Exatamente como eu queria: que ele me subestimasse e baixasse a guarda. Encostei minha cabeça no banco do automóvel, ignorei a libido que ardia em minhas partes íntimas e me preparei para o confronto.
O apartamento ficava em uma cobertura, numa das áreas mais valorizadas da cidade, e era como seu dono: belo, charmoso, mas um pouco esnobe demais.
Adam quis me oferecer uma bebida e tomei a decisão de agir naquele momento. Agarrei-o e roubei-lhe um beijo. Quando nossos lábios se soltaram, eu perguntei onde ficava o quarto. Ele riu e disse que eu acabava de surpreende-lo. A idéia era exatamente essa: estávamos num jogo de caçador e presa e quanto mais eu pudesse iludi-lo de que estava no controle, mais fácil seria derrotá-lo.
Logo estávamos transando. Não digo fazendo amor, porque não se faz amor com um vampiro. Tudo que eles sabem de um coração humano é devorá-lo (literalmente).
Talvez alguém me pergunte porque eu precisava transar com ele ao invés de simplesmente matá-lo logo. Bem, sexo libera feminilidade; feminilidade está ligada à Magia e Magia...Ora, eu sou uma bruxa, e, acreditem, deixá-lo baixar a guarda através do sexo, não é apenas uma das formas mais seguras de se pegar um vampiro, mas também a mais divertida.
Quando terminamos, notei que ele poderia ter demorado mais, porém, havia se apressado. Talvez o temor da hora adiantada e de que o sol nascesse. Não importava, eu estava fervilhando de Magia e pronta para atacar. Ele também.
Adam ainda estava na cama, ajoelhado, minhas pernas ainda entre as dele. Nós continuávamos nus. Eu me espreguiçava no lençol, fingindo que havia acabado de provar o melhor sexo da minha vida e dizendo a mentira romântica básica de ter encontrado o "homem de meus sonhos".
Por dentro ria dele.
O vampiro esticou a cabeça para trás. Quando voltou os olhos para mim, suas presas estavam à mostra e havia fome em seu rosto. Ele acreditava que eu seria uma refeição indefesa. Olhei-o, estirei minha mão direita bem aberta, a palma voltada para seu peito, pronunciei uma seqüência de três palavras mágica - que soaram feias e gutural demais, como tudo em língua de bruxa - e disparei um encantamento. Ele pareceu abalado por instante...Apenas por um instante... E depois... Nada!
Repeti o feitiço, já começando a ficar desesperada. Deusa! Minha Magia falhara! Mas era apenas um vampiro! Isso nunca havia acontecido antes.
Então, meu inimigo começou a rir - um som selvagem e cruel.
Aterrorizada, rememorei vários encantamentos, qualquer coisa que pudesse me salvar daquela situação.
Contudo, algo estava me bloqueando...Impossivelmente, eu me tornara incapaz de acessar a Magia. Ele começou a falar. Indefesa, apenas escutei.
- Sarah... Está surpresa, caçadora de vampiros? Nem imagina o que aconteceu, não é? Não percebeu a droga na bebida? Pó de bruxa. Eu e Teresa (que você chama de Teresa Velásquez Torrentes) somos amantes agora. Desde que imigrei para este país, ela tem me dado o apoio necessário para que eu possa me alimentar em segurança. Em troca, permito que filme minhas caçadas. Teresa soube de você e ficou curiosa. Mas não quis se expor e pediu que eu te pegasse... Ah, Teresa, querida, espero que aproveite bem porque tenho uma coisa especial para essa cadelinha aqui.
Deusa! Pó de Bruxa. Interfere no poder de gente como eu. Sempre duvidei que existisse. Muito polêmico entre as feiticeiras, como as armas químicas são entre os humanos normais. Se não me falha amemória, está proibido há uns dois séculos. E como eu pude ser tão tonta para cair numa armadilha dessas?
Claro que deixei essas considerações de lado quando vi as mãos deAdam mudando, se esticando até se tornarem longas garras com longas unhas nas pontas. Nem sempre um vampiro usa aquela mordida sensual no pescoço da vítima. Às vezes, eles estraçalham a presa para só depois sugar o sangue. Como ele pretendia fazer agora comigo.
Tentei forçar minha alma, insistir para acessar a Magia novamente.
Mas uma parte minha já tinha entendido que eu morreria ali mesmo, porque leva horas para que o pó de bruxa perca o efeito e mesmo mamãe e vovó não conseguiriam reverter o efeito daquela droga a tempo de se salvarem de uma situação assim. Eu devia ter levado estacas e crucifixo...
Mas, enquanto as garras se aproximavam de meu ventre, decidi que não ia me entregar daquele jeito. Eu fizera muita coisa na vida, algumas bem importantes, para morrer de uma forma tão estúpida quanto aquela. Então me concentrei. Três é um número mágico para as bruxas.
Três de nós é um exército. Três são os aspectos da Deusa. Três são os nomes sagrados. Três são as leis da Magia. Três são os segredos que sustentam a Criação. Três são os caminhos para a perdição e Três são as disciplinas que levam a sabedoria. Eu precisava tentar pela terceira vez. Coloquei toda minha alma, desespero, feminilidade e desejo naquele encantamento e tentei novamente. Meu corpo ardia, em suor e febre. Senti o pó de bruxa fervilhando em meu sangue.
Mentalmente, eu pronunciei o pior palavrão que conheço, seguido pelas palavras do encantamento. Então, disparei o feitiço de novo contra ele e juntei as mãos em súplica. Tinha de funcionar. Mamãe e vovó podem mestar no Inferno, mas eu não tinha qualquer interesse em ir fazer companhia a elas.
- Sarah, Sarah - Adam grunhiu, com as garras já tocando em meu estômago - Por que insiste? Não vê que é impossível para alguém como você?
Porém, no momento que se seguiu ele parou. Recuou e pôs a mão direita sobre a boca, como alguém tentando evitar um vômito.
- Sua meretriz! O que você... - blasfemou ele e levantou-se da cama. O rosto era de um terror como vi poucas vezes. Parecia afligido por dores fortíssimas. Tirou a mão da boca, olhou para mim como se eu fosse o próprio demônio e virou-se para fugir pela porta do quarto.
Contudo, ele jamais tocaria a maçaneta. O peito de Adam explodiu de dentro para fora e, cambaleante, ele foi tomado por explosões menores que começaram a pipocar por seu corpo. Logo, já lhe faltava um braço e o rosto estava inacreditavelmente desfigurado. Por fim, o que restava dele explodiu numa nuvem de ossos, tripas, carne e sangue.
O mais incrível de tudo é que ele não gritou, nem houve qualquer som enquanto era despedaçado. Ao ver coisas como essa - e compará-las com o mundo tão previsível, normal e tedioso - eu compreendo porque gosto tanto da Magia.
Óbvio que o encanto original só era para afetar o peito dele, mas quem poderia me culpar por exagerar um pouco num instante de desespero?
Fiquei deitada uns minutos. Esperando a temperatura de meu corpo baixar, o sangue não querer mais ferver e o coração parar de bater daquele jeito.
Depois levantei. O quarto era uma imundice, com pedaços de Adam espalhados por todo canto. Tomei um banho. Sentia que precisava lavar não apenas meu corpo, mas também minha alma.
Quando saí do banheiro, constatei que minhas roupas, que o vampiro havia largado no chão, estavam coloridas de sangue. Juntei-as e guardei-as num saco plástico, pois não queria que nada meu ficasse ali. Pensei em pegar o carro de Adam, mas estava enojada de qualquer coisa que se relacionasse a ele. Usei o celular e chamei um amigo, com quem já tive um caso. Ainda somos muito ligados e ele me socorre em momentos como esse. Enrolei-me com uma toalha, saí do quarto e fui esperar meu amigo na sala do apartamento.
Logo, ele chegou. Quando abri a porta ele entrou indagando:
- Oi, Sarah! Tudo bem? Ei, que cheiro esquisito é esse?
Eu não me sentia com ânimo para responder essa pergunta e por isso não o impedi de entrar até o quarto e descobrir a fonte do odor que o incomodava. Deixei que fosse sozinho.
Ele voltou alguns segundos depois, horrorizado e com ânsia de vômito.
- Meus Deus! O que foi que aconteceu aqui? - quis saber.
- Rodrigo - retruquei - Sem perguntas, tá bem? Trouxe as roupas?
Ele fez como pedi. Sem indagar mais nada. Era essa nossa regra.Troquei-me na frente dele mesmo. Eu estava com pressa e não havia nada em meu corpo que Rodrigo já não tivesse visto.
Entreguei minhas antigas roupas no saco plástico a ele. Pedi que levasse dali e queimasse.
Rodrigo me deu uma carona em seu carro de volta para meu apartamento. Até chegar lá, ficou desfilando os detalhes de seus dias mais recentes. Meu amigo é uma daquelas pessoas que precisa falar sobre si mesmo o tempo todo. Às vezes, deslizava para uma insinuação ou outra, lembrava de nosso tempo junto e me deu umas ou duas cantadas. Como sempre faço, ignorei-o. É outra regra que tenho com ele.
Ao chegar no estacionamento do prédio onde moro, agradeci e me despedi com um beijo no rosto, pois não tinha interesse em incentivar-lhe as idéias. "Lamento, querido" - pensei - "você ficou no passado, eu não". Rodrigo me desejou uma boa noite de modo muito formal e partiu sem acrescentar qualquer outra palavra. Melhor assim.
A última coisa em que eu pensava naquela hora era sexo.
Desabei sobre a cama, mas não conseguia dormir. Minha cabeça fervilhava de planos, vingança e feitiços. Eu havia feito o que mamãe e vovó jamais conseguiriam. Mas isso não era o bastante para mim. Eu antevia, com um prazer cruel, o instante em que estivesse cara a cara com Teresa, porque há um costume entre as feiticeiras, uma regra de etiqueta por assim se dizer. Se uma bruxa atacar outra, esta não deve escapar com vida. Se sobreviver, terá de matar sua inimiga. Nenhuma de nós se atreve a contrariar essa norma.
Meu coração encheu-se de fúria quando pensei no que faria com ela.
Involuntariamente, liberei um outro feitiço e meus olhos brilharam como se houvesse fogo neles.
- Teresa Velásquez Torrentes, você comprou sua passagem pro Inferno. Vou te pegar e, dessa vez, não vai haver nenhum pó de bruxa no caminho - eu disse e desejei ardentemente que minha nova inimiga pudesse me escutar.
FIM

MIGUEL REENCONTRA JULIA

Por: Rita Maria Felix da Silva
Noite de quinta-feira chuvosa. Quarto no segundo andar daquelacasa antiga. Júlia dormia um sono inquieto, enquanto uma voz falavapara seu coração:
"Você e os outros me chamavam de Miguel. Quando estava vivo, ameivocê. Ainda amo, mas depois de hoje nunca mais te verei, porque metornei perigoso demais e é melhor que eu me exile até este mundo acabar.
Como sabe, a herança de meus pais me permitiu uma vida farta e euera fascinado pelo sobrenatural. Gastei uma fortuna para descobri tudoque podia sobre esse assunto.
Quando te encontrei, você se tornou minha âncora com o mundo real.Naquela época, me sentiria ridículo dizendo, mas hoje percebo que'nenhuma mulher jamais foi amada, como amo você'.
Podíamos ter casado e tido uma vida normal. Porém, não te escutei.Parti aquele dia, jurando que seria uma viagem rápida. Não era minhaintenção, mas desapareci. Como você deve ter sofrido!
Vaguei por terras distantes. Eu havia subornado pessoas poderosasem troca da informação que me levaram ao refúgio no Tibet dos últimosremanescentes dos humanos escravos da Atlântida (do tempo em que esta,a Lemúria e Thurseldunium governavam o mundo). Aquelas pessoasguardavam a cripta da divindade deles. Um lorde atlante. Um vampiro.Disseram-me que eu estava destinado a despertá-lo. Algo em mimhesitou, mas mergulhei nos pergaminhos que me mostraram, até queexecutei aquele terrível ritual. Dez escravos cortando as gargantasuns dos outros, enquanto eu pronunciava encantamentos que fizeramminha alma gritar...
Quando a criatura se ergueu, implorei que algum Deus pudesse meperdoar pelo que eu havia libertado sobre o mundo. Em gratidão, omonstro me transformou em vampiro também.
No tempo que se seguiu, o lorde atlante (o verdadeiro nome dele éimpronunciável para alguém que já tenha sido humano) esperou enquantorecuperava as forças e me contava os horrores que planejara para omundo. Eu retivera as memórias de minha humanidade. Escondi meuspensamentos como pude, mas ele descobriu sobre você e gargalhou deforma perversa.
Então, me arrastou de volta até aqui e tentou me obrigar a tematar. Eu resisti. Furioso, jurou que te assassinaria diante de meusolhos. O amor não pode ser como nos filmes, mas esta noite lutei porvocê e, contrariando o impossível, eu o detive e o matei. Desta vez,ninguém poderá despertá-lo.
Júlia, agora tenho que partir. Continue sua vida - minha dádivapara você - e seja feliz. Quanto a mim, neste coração vampíricoguardarei eternamente as luminosas memórias dos momentos que passei ateu lado. Adeus."
Júlia sentiu algo frio e morto beijar seus lábios e pulou da camanum sobressalto. No chão do quarto, viu um esqueleto em cujo crâniohavia caninos salientes.
A janela estava escancarada. A jovem correu até lá. A chuva haviaparado. Em seu coração, Júlia ainda pôde escutar o lamento abissal edistante de um morcego...
FIM