Tuesday, April 18, 2006

LORDE DRI

Por: Rita Maria Felix da Silva
"(...) Ele havia escolhido um nome humano, como convinha à situação, mas ainda chamava a si mesmo de Lorde Dri, na verdade um título, que o conectava a uma linhagem de milênios.
Há um século, fora um vampiro de elevada estirpe, cujos inúmeros feitos tornaram-no orgulho de seu povo. Embora amasse a espécie a qual pertencia, o destino o fez encontrar uma humana a quem ele entregou seu coração imortal. Todavia, sua felicidade foi breve, como compete aos vampiros, pois os ardis dos inimigos logo vieram para tomar a vida daquela a quem Lorde Dri tanto amou. Mesmo assim, ele já havia seafeiçoado por demais aos humanos.
Lorde Dri sabia que, em épocas primervas, vampiros e humanos compartilharam uma origem comum e conviviam em paz, quando o sangue das feras ainda era o suficiente e os homens e mulheres desse mundo eram mais do que caça e alimento. Cem anos atrás, ele preocupou-se ao antevir a crescente intenção belicista de algumas facções vampíricas, o que iria levar a uma guerra direta contra a humanidade, um conflito ao qual nenhum dos lados sobreviveria. Tentando evitar a extinção fezo, que sempre se julgara impossível tornou-se humano; para mediar a relação entre as duas espécies.
Desde então, estudou magia, para adquirir os meios de prolongar sua vida — e assim prosseguir em sua tarefa, até o dia abençoado em que não fosse mais necessário — e também para defender-se da multidão de adversários que ansiava pela ruína dos povos humano e vampírico.
Sabe-se que a nova vida de Lorde Dri não foi tranqüila, como cabia a alguém de sua condição. Conta-se que ele viveu inúmeras histórias tempestuosas. Como a que conto a seguir...
"(Trecho extraído de "As Crônicas de Marind")
O prédio era antigo e situava-se num ponto afastado do centro de São Paulo. A arquitetura pareceria gótica, com linhas que se esticavam desejosas de tocar os céus. Estátuas de gárgulas e anjos adornavam as escurecidas paredes externas. Todos os andares estavam vazios, excetoa cobertura, onde se podia encontrar o único habitante do edifício: Lorde Dri. Solidão e isolamento, diriam alguns, ele chamava apenas deprivacidade.
O apartamento era espaçoso. Estantes cheias de livros antigos num dos cantos. Decoração com móveis de antiquário. Relíquias preciosas e incomuns aqui e ali. Um gato de pêlo acinzentado descansando indolentemente debaixo de uma poltrona. Um computador na escrivaninha.
Ao lado, uma xícara de café. Na tela as primeiras linhas de um novo conto. Sobre o mousepad, anotações num bloco de papel, a respeito de mudanças no site.
Em outro cômodo, um grande e antigo relógio acabara de soar sete horas. Lorde Dri havia aberto as portas de vidro que davam para avaranda. Ficou lá fora, sob a luz de uma lua suave e minguante,meditando sobre a profundidade da noite, absorvendo suas fragrâncias e, com uma mente aguda, escutando as tentações e possibilidades da escuridão. Por um momento, lembrou do que era a data de hoje, sorriu levemente, mas logo preferiu ignorar essa informação, afinal, para uma criatura como ele, algo assim não deveria importar.
Ainda estava divagando, quando sentiu uma leve perturbação na delicada teia de magia que sustenta a realidade. O gato cinzento miou melancolicamente e fugiu apressado. O mago virou-se. Rapidamente, murmurou dois encantos formados por monossílabos de um dialeto lemuriano. Um invisível círculo místico de proteção formou-se ao redor dele. O feiticeiro estirou o braço direito e de sua mão partiu uma esfera de energia azulada que derrubou uma forma estranha no canto dasala.
Ainda com o círculo de proteção ativado, aproximou-se do ser humanóide— pele avermelhada; sem cabelos ou pêlos; olhos amarelos, oblíquos e desprovidos de pupila; vestido em trapos feito de coro grosseiro —caído sobre um tapete árabe do século X, enquanto a energia azulada crepitava em torno daquele corpo.
— Paz e piedade, grandioso Lorde Dri! — implorou a criatura — Oh, remova o feitiço, remova!
— Slifgor, — reconheceu ele e olhou com desprezo e irritação para acriatura, um demônio menor, porém insistente, que teimava em desafiá-lo — você invadiu minha casa certamente com intenções hostis.
Eu estaria em meu direito se o destruí-se.
— Não, milorde! Vim avisá-lo como um amigo.
— Você nem sabe o que essa palavra significa — riu Dri.
— Grandes mudanças no Plano Inferior, senhor. — grunhiu o demônio —Todo um novo Status Quo e a situação ficou perigosa para criaturas como eu. Preciso de aliados no mundo mortal. Trouxe informações valiosas, em troca de uma aliança.
Se as atitudes de Slifgor não fossem também risíveis, Lorde Dri não teria paciência com ele durante todos esses anos, por isso permitiu que continuasse.
— Muito bem, diga o que quer, mas saiba que não tenho interesse em me aliar com alguém incapaz de dizer uma única verdade.
— Mestre Dri! — grunhiu a criatura — a verdade arde, é veneno que dóie queima, mas posso ser sincero quando isso me é útil. Há uma conspiração contra você.
— E em que época não houve? — ironizou.
— Não, dessa vez diferente! — disse o demônio — Seus mais queridos amigos.... São eles que agora tramam sua queda.
— Imbecil mentiroso! – irou-se o mago – Agradeça por que vou apenas enviá-lo de volta para casa, ao invés de fragmentar seu espírito. Como eu deveria fazer....
Em seguida, ergueu a mão esquerda para gesticular, porém, Slifgor emitiu um grito tão desesperado que o fez paralisar de espanto.
— Não, Senhor Dri, orgulho da espécie humana e vampírica! Escute antes que seja tarde! Escute com seu espírito!
— Não, Nem mesmo em uma eternidade meus amigos tramariam contra mim.
— Há! — zombou o demônio — pois a eternidade chegou! Reconheça que eles, que sempre foram aliados de grande valor, poderiam ser muito perigosos se assim o desejassem.
— E por que fariam isso? — questionou Lorde Dri.
— Você é uma criatura incomum e seu potencial incomoda a mais seres do que imagina. Durante anos, aqueles a quem chama de amigos temeram e hesitaram agir contra seu destino, mas é tempo de grandes mudanças por toda a parte e a relutância terminou. Convidaram-no para uma reunião inexplicável ainda esta noite, não foi? A conspiração age hoje e Lorde Dri não sobreviverá a ela. Escute minhas palavras e pergunte a seu coração.
A acusação encheu de ira o mago, todavia, por algum motivo que ele não saberia explicar, uma parte de seu coração escutou as palavras de Slifgor.
— Muito bem, demônio, — disse Lorde Dri por fim, enquanto dissipava o encantamento que continha aquela criatura — parta daqui e mantenha-se afastado até que o convide a voltar... Eu ponderarei sobre o que me disse.
— Minha espera será breve, poderoso senhor! – disse Slifgor e explodiu em gargalhadas para depois desaparecer.
Lorde Dri foi até um armário e de lá trouxe um pequeno baú, onde havia, entre outras coisas, uma esfera de prata, perfeitamente uniforme, soberbamente elaborada por mãos que jamais foram humanas.
Sentou-se numa poltrona da sala e ficou contemplando aquele objeto,que lhe fora dado como agradecimento três décadas atrás, durante uma de suas estranhas aventuras. Ele gostava de segurar a esfera entre asmãos, admirar sua forma perfeita. Era um modo de lidar com a tensão, de tentar relaxar em instantes de tormenta.
Os próximos dez minutos foram gastos enquanto ele ponderava sobre o assunto e amaldiçoava a si mesmo, pois, embora houvesse divergência entre as partes de seu coração e espírito, aquelas que acreditaram nas palavras do demônio começavam a sobrepujar as outras.
Logo, guardou de volta a esfera. A reunião misteriosa seria às oito e meia. Aprontou-se como pôde, muniu-se de todos os encantos que sua prudência e o tempo escasso permitiram-lhe reunir. Trocou de roupa e ao sair prometeu a si mesmo que — o que quer que acontecesse — não seria pego desprevenido.
Por cautela, chegou ao local um pouco antes da hora marcada. Parecia um depósito velho e abandonado, talvez um teatro falido ou algo assim.
Subiu uma escada até o primeiro andar e chegou a um grande cômodo.
Tudo estava escuro. Procurou e não pôde encontrar um interruptor.
Antes que invocasse um encantamento luminoso, seu coração gelou. Lorde Dri percebeu uma pequena anomalia nas fronteiras de sua percepção —habilmente escondida — liberando estática mística com a clara intenção de confundir seus sentidos mágicos, permitindo que um inimigo se aproximasse sem preocupação. As palavras de Slifgor começaram acastigar sua memória.
Ele lutou para superar a estática e logo começou a distinguir algo daquela escuridão. Havia muitas pessoas ali, — dez, talvez vinte — em absoluto silêncio, todas utilizando variações de encantamentos de ocultação. O mago entendeu que estava cercado, em posição desvantajosa e prestes a ser atacado.
Porém, mais do que a ameaça em si, o que o incomodou foi o que seu coração começou a lhe mostrar. Ele tentou olhar para dentro da escuridão e disse:
— Giulia... Você está aí? — e, na escuridão, ele pôde sentir um sorriso não de lábios, mas que provinha da poderosa mente da vampira aquem chamam de Tecedora de Contos Sombrios e Histórias Vorazes, Mestra de mistérios e profunda magia, que antes fora uma querida amiga
— E você, Martha? Está aqui também, não é? — e, nas trevas, o espírito da feiticeira humana que, em outros círculos, ganhou o direito de usar o título de Senhora das Artes Escritas e Mágicas, aquela que sempre fora sua confidente, não pôde esconder-se dele.
— Camila, também veio? — e, no escuro, a presença da Fada das Letras e Poesia, criadora de canções de singelo e impressionante poder, a quem ele elogiara neste reino e em tantos outros, revelou-se para ele.
E, na escuridão, uma delas se virou para uma outra e disse:
— Esse cara é incrível, não é? Talvez no mundo todo só dois outros magos, além dele, conseguiriam detectar aquela anomalia que você colocou no campo místico desta sala.
E, no escuro, outra voz se ergueu:
— Vamos logo, meninas e rapazes, não nos preparamos tanto para isso àtoa, não é?
E, nas trevas, alguém mais se pronunciou:
— Dri, você vai adorar! Há anos que queremos fazer isso.
A traição daqueles a quem tanto prezou machucava o espírito de Lorde Dri e, por isso, uma lágrima deslizou por sua face. No escuro, a Tecedora, a Senhora e a Fada se moveram em direção a ele e uma multidão – composta por vampiros, lobisomens, feiticeiros e feiticeiras (humanos ou não) e outros seres sobrenaturais — as acompanhavam. Lorde Dri preparou-se. Apesar de seu coração ter acabado de se partir, o momento exigia uma batalha e, se estava escrito que a noite terminaria em carnificina, ele jurou para si mesmo que muitos outros corpos tombariam antes do seu.
O mago já ia acionar seus mais poderosos feitiços, quando veio um som distante e seco, seguido de uma inesperada luminosidade. Por um fragmento de instante, ele pensou que fosse um encantamento luminoso lançado contra seus olhos, todavia uma parte de sua mente avisou que eram apenas lâmpadas que foram acesas após alguém apertar um interruptor.
A cena diante dele lhe pareceu estranha e inesperada demais:
Giulia Moon, Martha Argel, Camila Fernandes e muitos outros amigos seus, abraçavam-no e cantavam "Parabéns pra Você". Na sala, havia mesas com comida e bebida e, por toda a parte, faixas onde podia se ler inscrições como "Feliz Aniversário, Dri!". E, no rosto daquelas pessoas, ele não encontrou qualquer traição, apenas uma alegria, simples, desavisada e sincera.
De repente, Dri sentiu uma nova perturbação na Teia Mística da Realidade, e todos, excerto ele, ficaram estáticos e o próprio tempo parou. Ele não precisou que seus sentidos o alertassem, pois seus sentimentos já haviam feito isso. Ele se desvencilhou de seus amigos evoltou-se. No canto da sala, havia uma jovem. Seus cabelos eram escuros e ondulados como se tivessem sido tecidos a partir da essência da própria noite. A pele era pálida como o luar. Os olhos lembravam atranqüilidade de estrelas distantes no céu noturno e por trás deles podia-se sentir um espírito profundo e antigo, porém cheio de desejo, paixão e intensidade. As feições e as formas pareciam terem sido esculpidas em mármore por algum hábil artista e delas escapava uma beleza que jamais poderia ter sido humana. Suas roupas eram de couro, modernas e pretas e em suas costas podia-se ver as asas que denunciavam sua condição de anjo.
— Marind. — disse Lorde Dri e olhou surpreso para a presença inesperada daquela integrante das Legiões Noturnas.
— É, seu bobo.— respondeu ela — Esperava quem? Zashiel no seu aniversário? Viu só, não havia conspiração nem nada. Era só uma festade aniversário. Uma festa surpresa. Sãos seus amigos, nunca iriam aprontar com você..
O feiticeiro olhou para ela com atenção. Marind o amava, mas do que ele podia julgar possível. Semelhante a Dri, aquele anjo havia se aproximado demais dos humanos e foi assim que o encontrou. Eles fizeram amor, algumas vezes, e estiveram juntos, por um tempo, no entanto a memória da humana Cassiopéia ainda era forte demais no coração de Lorde Dri e, por isso, eles precisaram se afastar.
— Feitiços que mexem com o tempo são bem perigosos — disse ele.
— Sem querer ofender, eu tenho mais experiência que você — respondeu ela.
— Com certeza. Mas, como eu pude acreditar em Slifgor? — questionou Dri e a culpa começava a corroê-lo.
— Aquele é um idiota sortudo. Escavacando, em busca de comida, nas ruínas de Baral-Jadhur, uma antiga fortaleza dos demônios na borda do Inferno (ainda lembro quando destruímos aquele lugar.), ele encontrou um pergaminho com um encantamento perdido. Não tenho permissão para dizer o efeito que aquele feitiço teria sobre alguém de minha espécie, mas Slifgor, por curiosidade, testou num humano e descobriu que servia para convencer que se estava dizendo a verdade. Funcionou até com você. Estou impressionada.
— Eu devia ter resistido. Olhe para meus amigos, tão inocentes, julguei-os mal. A verdadeira traição foi a minha — lamentou Lorde Dri, curvando a cabeça.
— Ei, como você é dramático! Não foi culpa sua. Lembra que estava sobre influência de magia? O pior é que o conheço e sei que vai passara a eternidade se recriminando. Eu vou evitar isso. É seu aniversário e tenho que te dar um presente, não é? Vou apagar e reescrever a última hora e meia que você passou. É só um pequeno intervalo de tempo. Coisa fácil de fazer. Se alguns dos Anciões grunhirem, sem problema. Eu sei lidar com eles. — ela disse e começou a se concentrar e o tempo rugiu e se contorceu sobre si mesmo — Tinha outra coisa que eu queria fazer.
Não, você também não ia lembrar disso. Deixa para depois. —acrescentou Marind.
Lorde Dri estava de pé no meio daquela sala. Uma festa de aniversário surpresa ao seu redor, uma multidão de amigos abraçando-o e cantando.
Tudo parecia bem, mas ele sentia algo errado, como se alguma coisa faltasse. Rememorou tudo o que fizera naquele dia. Lembrou que, no início da noite jantara, depois ficou diante da tela do computador, com uma xícara de café, enquanto começava a redigir um novo conto e anotava mudanças a serem feitas no site. Em seguida, foi à varanda,contemplou a noite por um tempo, depois entrou para se aprontar e vir para cá. Quando chegou foi surpreendido por esta festa. Não, nada faltava, tudo estava bem. Assim, o feiticeiro, ignorou o leve incômodo no fundo de sua mente e o assunto foi esquecido.
Giulia Moon estava abraçando-o quando disse:
— Ah, Dri, há anos que queríamos fazer algo assim. Mas você é tão avesso a comemorações. Até pus uma anomalia na Teia da Realidade, para confundir seus sentidos mágicos e te pegarmos de surpresa mesmo. Você é bom, porém, felizmente, não detectou. Parabéns, meu amigo!
— Obrigado, Tecedora de Histórias! — respondeu ele, se permitindo a sorrir.
— Sempre formal, não é? Relaxa um pouco. É teu aniversário. — comentou ela — para depois acrescentar — Nossa! Você está carregado de feitiços em modo de espera, prontinhos para serem usados. Vai para alguma guerra depois que sair daqui?
— Não, deve ser só por segurança. Acho que estou ficando paranóico.
— Como eu disse, relaxa: é teu aniversário.
— É, relaxa um pouco. — disse uma voz por trás dele.
O feiticeiro soltou Giulia e se virou. Lá estava Marind.
Ela se aproximou dele, puxou-o para si e o beijou. Ao redor, as pessoas, humanas ou não, riram e brincaram com a cena.
Quando o beijo terminou, ambos falaram em voz baixa e ativaram encantamentos para impedir que alguém pudesse escutá-los.
— Não me diz que eu não devia ter feito isso. A lembrança de Cassiopéia pode assombrar você por toda a eternidade, mas acho que um momento como esse não é nenhum pecado.
— Não é não. — disse ele e curvou a cabeça rindo meio para si mesmo.
— Ah e esse foi meu primeiro presente. Tem outro.
Como se houvesse surgido do nada, um pequeno objeto foi entregue por Marind. Lorde Dri segurou-o atenciosamente entre as mãos.
— É mesmo ele? Já não o vejo faz tempo.
— Isso, acho que você não o viu recentemente. — Marind disse enquanto ria para si mesma, de uma forma que Lorde Dri não pôde entender. — Sei que essa coisa vive te incomodando. Arranjei uma pausa na guerra e cuidei para que nunca mais fizesse isso. — como se houvessem combinado, ambos desativaram os feitiços de silêncio. Ela acrescentou, falando em tom normal —Parabéns, Dri, de todos aqueles que te amam.
E todos gritaram parabéns. Lorde Dri agradeceu, colocou o objeto no bolso e foi participar da festa.No interior daquele pequeno cubo — feito de um cristal inexistente no planeta Terra — a forma reduzida, congelada e inerte daquele que um dia fora o demônio Slifgor repousava tranquilamente.
FIM.
Nota: Dedicado a Adriano Siqueira/Lorde Dri, por seu aniversário.
O personagem Lorde Dri foi criado por Adriano Siqueira.

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